Batalha do streaming


* Márcia Scapaticio, via Cultura e Mercado

Assinar um serviço de streaming e formar sua coleção virtual de discos escolhendo a música que quer ouvir em casa ou no fone de ouvidos enquanto vai para o trabalho não é uma questão individual, não diz mais respeito só a você. A popularização dessa opção e a relevância econômica que os serviços de streaming estão ganhando na indústria fonográfica começam a acirrar o debate entre os envolvidos e interessados nessa outra maneira de consumir música.

Dado da Associação da Indústria Fonográfica americana apontou que as plataformas de streaming lideraram o mercado nos Estados Unidos em 2015, deixando para trás os downloads pagos (34%) e os discos físicos (28,8%), concentrando 34,3 % do mercado, em comparação com 2014, quando o serviço representava 27% do total. Em sintonia com os fatos, a Recording Industry Association of America (RIAA) - organização que representa gravadoras como Atlantic, Capitol, RCA, Warner Bros., Columbia e Motown - criou uma nova fórmula para premiar os artistas campeões de vendas nos EUA. Por exemplo: 1.500 audições/visualizações no YouTube equivalem a 10 faixas ou um disco vendido. Com isso, os mais ouvidos e vistos serão premiados com o simbólico disco de ouro ou platina.

Discos do rapper Kendrick Lamar, ("To Pimp A Butterfly"), da banda de rock Alt-J (Awesome Wave) e da cantora Rihanna,( Anti) estão entre os premiados. Rihanna ganhou o disco de platina dois dias depois do lançamento oficial do álbum pelo Tidal, plataforma de áudio criada pelo rapper Jay -Z.

Para Karina Poli, historiadora, mestre e doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, que desenvolve pesquisas sobre políticas públicas de cultura e cadeia produtiva da música, os casos internacionais ajudam a entender o processo em desenvolvimento, mas a especificidade da legislação de cada país não se estende ao mercado digital. "Um dos elementos essenciais da discussão norte-americana fala sobre a gestão dos metadados no fonograma e a efetividade dos repasses. Hoje, com o modelo do streaming não se compra mais o fonograma; a quantidade de views estabelece o valor a receber e coloca mais um intermediário na cadeia da música gravada. Artistas independentes acessam as plataformas digitais de distribuição, mas não dominam as técnicas da gestão das informações", exemplifica.

Pontos de vista - O Ministério da Cultura brasileiro disponibilizou, de 15 fevereiro a 31 de março, uma consulta pública* do texto da instrução normativa (IN) que estabelece parâmetros para que as Entidades de Gestão Coletiva possam exercer atividade de cobrança no ambiente digital. "O objetivo é regulamentar a própria atuação do Estado, permitindo que o MinC, através da DDI, atue no processo de habilitação das entidades de Gestão Coletiva - competência essa atribuída pela Lei 12.853/13 (que entrou em vigor em dezembro de 2013) e regulamentada pelo Decreto 8.469, de 22 de junho de 2015 e IN/MinC 03, de 07 de julho de 2015″, explica em nota o MinC. "A IN não muda a natureza dos serviços, mas deixa claro para cada tipo de serviço quais direitos pode ser solicitada habilitação por entidades de gestão coletiva (que é a competência do MinC regulamentar)."

A consulta foi dividida em tópicos abertos a comentários sobre as disposições gerais do texto, o exercício da atividade de cobrança, habilitação, transparência e obrigações do usuário. Os especialistas ouvidos por Cultura e Mercado concordam que a consulta pública é necessária, mas divergem de um dos pontos polêmicos da discussão: a afirmação de que o streaming digital também corresponderia à execução pública da música.

"No resto do mundo há mais de um direito envolvido nos serviços de streaming, incluindo execução pública. As plataformas pagam também por execução pública nos serviços que envolvam streaming. No Brasil há resistência de alguns setores em reconhecer no streaming também a incidência da execução pública, embora parte deles paguem por isso (Apple Music e spotify). O Google (YouTube) também pagava, mas hoje discute a matéria judicialmente", informa o MinC.

O Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), que tem como principal objetivo centralizar a arrecadação e distribuição dos direitos autorais de execução pública musical no Brasil, diz em comunicado que considera os serviços de streaming digital como execução pública, citando a Lei de Direitos Autorais brasileira, que define o conceito de execução pública musical e prevê a proteção do direito dos titulares de música exteriorizada "por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro".

Já o Spotify, por meio de sua assessoria, posiciona-se contrário ao entendimento do streaming como execução pública e considera a mesma uma ameaça ao mercado de música digital no país: "O Spotify entende que a classificação equivocada na conceituação dos direitos envolvidos no streaming pode ser uma ameaça ao nascente mercado de música digital no Brasil".

Para defender sua posição, o serviço também recorre à Lei de Direitos Autorais, precisamente ao parágrafo 2º do artigo 68, que define execução pública como a utilização da música em "locais de frequência coletiva". "Como os usuários do Spotify selecionam o que irão escutar, não haveria que se falar em frequência coletiva, sendo esta entendida como uma programação contínua, simultânea e indistintamente oferecida ao público em geral, sem qualquer possibilidade de interferência/interatividade do usuário. Por sua vez, os locais de locais de frequência coletiva seriam aqueles em que a coletividade, expressa por conjunto de pessoas, tenham acesso livre".

O Ecad cita ainda o Marco Civil da Internet, em vigor no Brasil desde junho de 2014, segundo o qual a rede mundial de computadores foi concebida para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados. "O streaming nada mais é do que uma tecnologia que possibilita a disponibilização de música na internet e, considerando o objeto da utilização da música, podemos afirmar que, se o usuário final pretender apenas ouvir música, estaremos sempre diante de uma forma de execução pública musical. Portanto, há execução pública musical sempre que a transmissão por streaming possibilitar a audição da música, sem que o usuário final pretenda possuir ou ter a propriedade sobre a cópia do arquivo eletrônico que contém a obra ou fonograma".

Autor do livro "Música Ltda.", Leonardo Salazar concorda com a definição do streaming como modalidade de execução pública, justificando que a internet, por princípio, é um território livre de acesso público. "Institutos de pesquisa que monitoram dados online mostram que 67% das pessoas que a acessam o YouTube o fazem para ouvir música. Das 10 pessoas mais curtidas do Facebook, nove são músicos. Hoje, a internet faz o papel das rádios e tevês do passado. Quando a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610) foi publicada em 1996, nem o MP3 estava popularizado mundialmente. Agora tudo mudou, os hábitos de consumo musical mudaram, novas plataformas de divulgação surgiram e os agentes econômicos adaptaram seus modelos de negócios. Os serviços de streaming são parte fundamental do modelo de negócio da indústria fonográfica, do direito autoral e dos que lhe são conexos", defende Salazar.

Longe do fim - A discussão sobre a regulamentação de direitos autorais na web se mostra longe de um consenso. Quando pensamos em aspectos da difusão de música, costumávamos relacionar o espaço de mercado/consumo presente no rádio, tevê, cinema, publicidade e outros meios. Seguindo esse raciocínio, o streaming poderia ser incluído neste espaço? Aos apoiadores do serviço como execução pública sim, aos contrários, não.

"O consumo de música em ambientes como as plataformas de streaming e YouTube são simplesmente uma mudança de comportamento em função do desenvolvimento tecnológico", pontua Leandro Ribeiro da Silva, gerente de projetos do Brasil Music Exchange. Para ele, a opção pelo streaming é similar à ação de comprar um disco. "Consumir streaming é, na minha opinião, a mesma coisa que ir a uma loja física e comprar um disco para ouvir em casa, porém, agora não é preciso mais fazer isso, em função do desenvolvimento das tecnologias e das possibilidades de consumo".

Leandro acredita ser possível estabelecer uma relação de como os autores e compositores recebiam seus direitos em função da venda de um CD e como eles devem receber em função da execução do streaming. "Quando uma gravadora solicita a uma editora/compositor a autorização para gravar e comercializar uma música via CD, há duas possibilidades: a gravadora paga um valor fixo e tem a autorização ou a gravadora repassa (de acordo com o contrato estabelecido) um percentual de vendas à editora", explica. Ao adaptar tal contexto ao streaming, ele acredita que a editora - responsável pelos direitos autorais dos autores e compositores - deve seguir o mesmo processo. "Ou seja, receber um percentual do valor gerado em função da comercialização do fonograma ou um valor fixo pelo licenciamento da música".

Para Karina, embora a consulta pública online do MinC seja importante, faltaram outros tipos de ações, como debates e reuniões com especialistas e estudiosos, movimentação útil para compreensão de todo o processo. "Há pouco tempo soubemos que o ministro Juca Ferreira se reuniu com um grupo de artistas da Associação Procure Saber, cuja maioria é composta por grandes arrecadadores. É importante ouvir o Colegiado Setorial e outros grupos para compreender como isso afetará o mercado, principalmente para aqueles que ainda estão à margem do grande mercado fonográfico", justifica. E enumera pontos que, se esclarecidos, somariam positivamente à consulta pública feita pelo MinC e ao futuro da legislação referente ao streaming no Brasil: "Como teremos certeza que o Ecad é o melhor órgão para centralizar e repassar os direitos autorais nesse processo? Como os acordos internacionais de propriedade intelectual se posicionam sobre essa questão? Sendo as empresas de streaming internacionais, como ficaria esse entendimento entre streaming e execução pública?".

A colisão ou o consenso entre as ideias defendidas são importantes para criar um ambiente favorável ao debate e resolução das várias arestas que se formam em torno do impacto da tecnologia no consumo de música, que vem se mostrando o setor mais facilmente influenciável e adaptável no mercado cultural.

*Nota do MinC: "A Diretoria de Direitos Intelectuais do Ministério da Cultura (DDI/MinC) está avaliando as propostas recebidas para produção de relatório com os resultados referentes às consultas públicas sobre as instruções normativas que visam a regulamentar a Legislação de Direitos Autorais. A previsão é de que o documento seja apresentado até o fim deste mês."

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